Eduardo GAGEIRO

TIMOR - No Amanhecer da Esperança

Amanhece em Díli. Mal nasce, o sol brilha com uma estranha intensidade e irradia calor, temperado por uma brisa marítima. Espelhado no mar, torna o azul profundo em prata, queima o olhar. Ao longo do dia, vai pintando de sombras matizadas as verdes…

Dili-Timor, 2000

Amanhece em Díli.

Mal nasce, o sol brilha com uma estranha intensidade e irradia calor, temperado por uma brisa marítima. Espelhado no mar, torna o azul profundo em prata, queima o olhar. Ao longo do dia, vai pintando de sombras matizadas as verdes montanhas, imponentes, atrás. 

Além Díli, perfila-se toda a extraordinária diversidade paisagística de Timor: sucessões de vales cavados e montanhas escarpadas, muitas nem sequer acessíveis a míticos guerrilheiros; planícies extensas, de erva alta, povoadas de cavalinhos bravios; praias e enseadas de areia branca umas, empedradas outras, em regra bordejadas de coqueiros, a recordar S. Tomé e Príncipe; plantações de café em colinas húmidas e verdejantes, também como em S. Tomé; arrozais escadeados em suaves colinas, como em Bali; curvas de estrada à beira mar que descortinam sucessões de cabos recortados em águas verdes clarinhas ou azuis cobalto; fitas sinuosas de asfalto em estreitos planaltos de onde se alcança o mar à esquerda e à direita, a norte e a sul; povoações de telhados de colmo dependurados duma igreja branca, no cimo duma elevação; ribeiras de leitos secos onde teimam em correr, tortuosos, ténues fios de água; trajectos que trazem à memória recantos indeléveis de Angola, do Alentejo, da Arrábida... 

Em Março de 1999, quando visitei pela primeira vez Timor-Leste, esmagou-me a exuberância da beleza paisagística e o seu contraste com a contenção sofrida, temerosa, desconfiada, que afivelava os rostos das gentes timorenses. No entanto, saudações em português, meia-dúzia de palavras adiantadas, olhares trocados, logo se desapertavam, atrás da máscara auto-protectora, sorrisos cúmplices, determinações de ferro, fé e esperança, engenhos de combatentes calejados na luta político-militar contra o ímpeto destrutivo dos ocupantes dos últimos 24 anos e no distanciamento político-cultural dos colonizadores negligentes dos últimos séculos, assimilando deles o que, não desvirtuando a identidade própria, antes a reforçava. 

Já há muito havia percebido como a resistência dos timorenses era o motor de todo o combate internacional por Timor-Leste, apesar de muitos - e designadamente Jacarta - a radicarem em iniciativas diplomáticas da antiga capital colonial. Mas compreendi então, nessa primeira visita a Díli e a Baucau, que resistir era reflexo inato dos timorenses, como a respiração das árvores que cobrem as suas montanhas e o vai-vem das suas marés. O povo timorense não reflectia apenas a morfologia contrastante da paisagem da sua terra, confundia-se com ela: não há Timor, sem timorenses (e não há timorenses sem Timor, que o digam os que suportaram o exílio e nunca desistiram de lutar). 

No ano 2000, Timor-Lorosae continua a impressionar pela força telúrica da paisagem - as gradações dos verdes das montanhas estão ainda mais densas com o sangue derramado no ano passado, a terra vai redimindo fogos criminosos fazendo brotar novos rebentos. Entretanto amanheceu a esperança, naquele dia exaltante de 30 de Agosto de 1999, em que o povo, confiante e desafiador, foi votar em massa. Tanto quanto a paisagem, no ano 2000 impressionam ainda mais a têmpera e o tempero das gentes timorenses: com eles se saram feridas, se vencem lutos, se recomeçam vidas; com eles se lançam as primeiras estruturas de auto-governação e assim se tece o futuro da nação livre e independente de Timor Lorosae. 

A correlação entre paisagem e gentes é inescapável em Timor Lorosae. Só a mestria de um Artista maior como Eduardo Gageiro a poderia apreender e fixar em toda a diversidade e profundidade. Mais do que rugas, risos, gestos e esgares, as fotografias do Eduardo captam almas e estados de alma. Dos verdes gloriosos das montanhas, às mãos postas em oração pelos velhos e aos sorrisos inocentes das crianças chapinhando nas ribeiras, aí temos Timor em toda a sua pujança, atiçando-nos o desejo irresistível de mergulhar no prodigioso azul-turquesa dos seus mares e de ser útil à esperança dos retratados. Obrigada, Eduardo. 

Ana Gomes