Eduardo GAGEIRO

LISBOA no cais da memória

LISBON down memory lane

Cidade Universitária, 1969

A cidade tem um rosto. Vísivel e invisível

Permanece na cor das casas e através da sucessão das ruas. Cada bairro adquiriu um perfil próprio.

Mas existe uma harmonia e um charme que se evidenciam na diversidade das fachadas; uma paleta que se desdobra do rosa-velho ao ocre, do azul ao bege, do branco ao verde-garrafa, do ouro velho, ao pérola e ao cinza, que o tempo e a chuva ainda tornam mais imprevista e fascinante.

Gageiro fixou tudo isto e com exemplos significativos. E o mais surpreendente é que as imagens a preto e branco recolheram a essência dos valores cromáticos da atmosfera e da malha urbana que identificam Lisboa.

Onde quer que esteja, Gageiro interpreta a luz e cor ao mesmo tempo que busca o espírito dos lugares e a interioridade das pessoas que os habitam. Desoculta as aparências.

A qualidade profissional e estética dispensam considerações. Basta lembrar que se trata de um fotógrafo com centenas de prémios e outras distinções atribuídos em todo o mundo, o que lhe conferiu o estatuto dos raros portugueses de projecção universal, mais conhecidos e prestigiados.

Este livro acerca de Lisboa constitui um documento social e cultural que abrange o período de 1954 a 1974.

Mostra-nos aspectos da cidade submetida a uma ditadura de meio século, que teve de suportar a repressão e o atraso que a distanciavam de outras capitais; e a cidade que no 25 de Abril festejou, com euforia, a revolução que restituiu a liberdade.

Não há no livro de Gageiro uma ordem cronológica. Optou pela sistematização temática que põe ainda mais em foco as diferenças de tradições, usos e ofícios que, a pouco e pouco, se extinguiram. Assim como desapareceram edifícios pombalinos, prédios característicos do século XIX, moradias dos anos 20 que singularizavam Lisboa, que deram lugar a blocos de grande altura, implantados sem espaços verdes e de convívio.

A figura humana voltou a ser o elemento nuclear da objectiva atenta de Gageiro. Representa uma interpelação e denúncia do quotidiano. Umas vezes, são os velhos à espera da morte que os leve; outras, jovens sem esperança e sem futuro. Entre ambos, mesmo quando impera o envolvimento poético, Gageiro estabelece o cumprimento de promessas não cumpridas, ilusões desfeitas, pessoas reduzidas a números, peças de uma engrenagem, na crispação de um crescendo de injustiças e desigualdades sociais.

Estes são, na paisagem natural e humana, alguns constantes gritantes que Gageiro registou e continuam a explodir à nossa volta. Lisboa, no cais da memória é um olhar crítico em redor da cidade e que testemunha, afinal, muito do que fomos e tudo ou quase tudo aquilo que hoje somos.

António Valdemar